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sábado, novembro 23, 2024

Solução dos problemas fundiários pode gerar impulso econômico e ordenamento social no campo

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O Dia Nacional de Luta pela Reforma Agrária traz todos os anos a lembrança de um país historicamente concentrador de terras e marcado por conflitos que atravessaram quase dois séculos de independência sem uma mediação política satisfatória e soluções técnicas que dessem conta das necessidades da população e suas forças produtivas. A data homenageia as vítimas do massacre de Eldorado do Carajás, quando 21 trabalhadores sem-terra foram assassinados em ação policial no Pará enquanto se manifestavam pela reforma agrária, em 1996.

Desde a década de 90, o processo de assentamento de famílias no país tem passado por altos e baixos, porém, nunca chegou à marca esperada desde a redemocratização, em 1985, quando teve início a desapropriação em grande escala e a redistribuição de terras, um dos motes de luta da esquerda que levaram à instalação do regime militar em 1964. Nos anos 60 e 70, ao invés do fatiamento de latifúndios, os governos militares optaram pela distribuição de glebas públicas, especialmente na Amazônia.

A política de assentamentos a partir de desapropriações, iniciada no governo Sarney, teve desdobramentos nas administrações de Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique, Lula e Dilma, mas diminuiu consideravelmente de ritmo no governo Temer. Depois de uma quase parada no período de grande instabilidade política e econômica a partir de 2015, a questão agrária vem sendo substituída nas prioridades governamentais pela regularização fundiária, modelo por meio do qual se busca colocar na legalidade quem já está ocupando terras sem os devidos títulos.

O número de famílias brasileiras assentadas sofreu queda de mais de 85% nos últimos anos. De 26.335 famílias assentadas em 2015, para 3,8 mil em 2020, com apenas 1,2 mil em 2017. Os projetos de assentamentos criados no Brasil também sofreram redução. Em 2005, foram 869 projetos de assentamento. Já em 2016, não passaram de 28, o menor número desde 1995.

De acordo com  Geraldo Melo, presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), autarquia federal criada em 1970, a reforma agrária não parou — apenas mudou de foco. Segundo ele, há uma percepção errônea, “infelizmente compartilhada por muitos setores da sociedade”, de que a reforma agrária consiste apenas na aquisição de terras e no assentamento das famílias nos lotes:

— O Incra segue trabalhando firme para garantir às famílias que vivem nos assentamentos uma melhor estrutura. Tudo isso com a dificuldade adicional de haver a necessidade de serem promovidos os ajustes para correção de erros cometidos em gestões anteriores, identificados pela fiscalização do Tribunal de Contas da União, que resultaram na medida cautelar para suspensão de várias ações da reforma, determinada pelo Acórdão 775/2016 TCU. Esse é apenas o início do processo.

Melo explica que a reforma agrária é um procedimento longo e complexo, só concluído após a entrega do Título de Domínio (TD) ao assentado:

— Nos últimos 20 anos, o desenvolvimento dos assentamentos por meio da aplicação das políticas de apoio como crédito habitação e assistência técnica, por exemplo, não tiveram grandes avanços.

Em 2020, informa Geraldo Melo, o instituto emitiu 109 mil documentos titulatórios, sendo 97 mil somente para os beneficiários da reforma agrária. Mais de 85 mil famílias tiveram sua situação regularizada, e quase 12 mil Títulos de Domínios foram entregues. A ideia, ressalta, é ofertar políticas públicas a pessoas que vivem nos mais de 9 mil assentamentos criados ou reconhecidos pela autarquia.

Inclusão produtiva

Com a mudança de orientação da reforma agrária e os esforços carreados à regularização ainda em marcha, é cedo para afirmar se a política fundiária vai de fato interferir na desigualdade estrutural fundiária do país, tanto em termos do tamanho das propriedades, quanto do acesso a capital, assistência técnica e apoio em áreas como educação, saúde e segurança pública. O fato é que essa desigualdade interfere diretamente nas condições de trabalho e no modo de vida dos trabalhadores rurais.

Na avaliação de Henrique Sales, consultor legislativo do Senado na área de agricultura, a regularização fundiária é imprescindível para que o produtor tenha acesso sistemático às políticas públicas de incentivo à inclusão produtiva. Sales observa que a terra irregular dificulta o acesso a serviços de assistência técnica e extensão rural (ATER) e a créditos de financiamento da lavoura, serviços essenciais para os pequenos produtores:

— Ao permanecerem em terras irregulares, os pequenos produtores tornam-se ainda mais vulneráveis. É inegável que a regularização das terras que ocupam pode beneficiá-los com mais cidadania, dignidade, segurança jurídica, social e econômica, o que favorece o conjunto dos produtores rurais, inclusive os médios e grandes.

Sem a documentação da terra, os produtores rurais perdem autonomia no acesso ao crédito, ingrediente vital para custear meios tecnológicos mais avançados e melhorar a produtividade. Por essa razão, o presidente da Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA), senador Acir Gurgacz (PDT-RO), vê a regularização fundiária como da maior importância para o aumento da produção de alimentos e da renda, além de contribuir para a preservação ambiental.

— A regularização de terras é uma questão de cidadania. Uma das formas de aumentar a produtividade é levar tecnologia ao campo. Existe uma discussão grande em relação ao desmatamento, mas podemos aumentar a produtividade na Amazônia, em torno de 30%, sem derrubar uma arvore sequer, apenas fazendo com que as áreas degradas possam ser produtivas. Para isso, nós precisamos de tecnologia, financiamento e programas do governo — argumenta o parlamentar.

Acir Gurgaz: regularização fundiária proporciona amento da produção e preserva o meio ambiente (foto: Lia de Paula/Agência Senado)

Em audiência recente no Senado, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, relatou que o governo trabalha para intensificar as ações de regularização fundiária. A previsão é entregar mais de 300 mil títulos a produtores rurais entre 2021 e 2022, sendo pelo menos 130 mil em 2021, mas podendo chegar a 170 mil em cada ano.

“Para possibilitar essas entregas, o Incra está realizando grandes investimentos em modernização dos sistemas e integração das bases de dados fundiários”, informou a ministra. Ela observou, entretanto, a necessidade de o Brasil “modernizar a legislação” para agilizar o processo de regularização.

Economia

As indefinições da política fundiária intensificam as dificuldades naturais do desenvolvimento no meio rural e são um dos entraves ao crescimento mais harmônico e descentralizado da economia. O agronegócio, entendido como a produção em grande escala para os mercados interno e externo, em geral com forte apoio em procedimentos técnicos, é um dos principais componentes do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro e da pauta de exportações e ampliou para 26,6% sua participação no PIB no ano passado, contra 20,5% em 2019, de acordo com Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e o Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea).

Num cenário de aproximadamente 15,1 milhões de pessoas ocupadas com atividades agropecuárias no Brasil e mais de 5 milhões de estabelecimentos, 77% são classificados como agricultura familiar, segundo o Censo Agropecuário do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2017, mas a soja é a lavoura com maior valor de produção, seguida da cana-de-açúcar, do milho e do café. Na pecuária, os galináceos são o maior rebanho em número de cabeças, seguidos dos bovinos e suínos, as três criações com forte impacto no grupo dos produtos exportáveis.

A pujança de um setor organizado e dotado de capital, que opera com a monocultura em propriedades de grande porte, contrasta com a estrutura precária, e ainda assim responsável maior pelo abastecimento alimentício do país, que é a chamada agricultura familiar.

Monocultura de soja e agricultura familiar: contrastes de estruturas de produção (fotos: Marcelo Camargo/Agência Brasil e Tomaz Silva/Agência Brasil)

No estudo “A Reforma Agrária nos ciclos políticos do Brasil (1995–2019)”, Renata Cattelan, Marcelo Lopes de Moraes, ambos da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), e Roger Alexandre Rossoni, da Universidade Federal Tecnológica Federal do Paraná (UFPR), recordam que a concentração de terras é resquício do modelo de concessões inaugurado pela Coroa Portuguesa com as sesmarias, uma distorção nunca corrigida, mas reforçada pela Lei de Terras (1850), que instituiu a compra como única modalidade legal de acesso à propriedade, e as políticas de apoio aos grandes produtores que começaram com a lavoura cafeeira. De modo que os sucessivos ganhos de produtividade por meio da modernização agropecuária, a partir de 1945, e da “Revolução Verde”, nos anos 60, foram obtidos à revelia de mudanças no modelo concentrador e não impediram a pobreza no campo e o forte e descontrolado êxodo rural.

“Logo no início do governo militar, ainda no ano de 1964, foi instituído o Estatuto da Terra (Lei 4.504, de 1964), que direcionou a política agrária brasileira para o campo da colonização. Isso quer dizer que não se pode confundir, a partir desse instrumento governamental, a reforma agrária e o processo de colonização, visto que a colonização é feita, em regra, em terras públicas e a reforma agrária tem por premissa a função social da terra, relativa a propriedade privada, devendo implicar em redistribuição e não na distribuição, como foi promovido no período”, diz um trecho do estudo.

Conforme os pesquisadores, a Constituição de 1988 “foi um marco institucional e jurídico no que diz respeito à política de reforma agrária no Brasil”. Com a redemocratização, os movimentos sociais puderam atuar livremente e obtiveram a inclusão no texto constitucional da “função social da terra” como um limite para a propriedade rural. “Caso descumprida a função, a terra poderia ser desapropriada para fins de reforma agrária”, diz o estudo. Essa inserção estimulou as expectativas “quanto à formalização de uma política de reforma agrária realmente eficiente”.

Para o senador Carlos Fávaro (PSD-MT), a reforma agrária tem um viés ideológico no Brasil, levando os pequenos produtores sem-terra a serem tratados de maneira assistencialista, e não como atores de uma atividade econômica relevante. O parlamentar defende a união entres os Poderes da República, a sociedade civil e as federações de trabalhadores da agricultura familiar em torno da elaboração de políticas públicas que modernizem a estrutura fundiária no país com base legal na titularização:

— O alimento que vem para a nossa mesa, as carnes, as frutas, as verduras e os legumes são produzidos na pequena propriedade. Essas que precisam ter esse olhar moderno, eficiente, de tecnologia, de investimento e de custeio, que nos últimos anos não eram feitos. Por isso, o primeiro passo é a regularização fundiária, título da propriedade. E a partir disso, se cria crédito, se criam instrumentos para que nós façamos dessa atividade a atividade econômica mais relevante no Brasil, dando suporte aos pequenos e médios produtores.

Para Carlos Fávaro, a reforma agrária no Brasil tem viés assistencialista (foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado)

MST

Os mais de 300 mil produtores rurais que aguardam um título de posse estão à margem não só dos financiamentos agrícolas, mas igualmente de licenças ambientais, emissão de notas fiscais e aposentadoria vinculadas ao tempo de atividade agrícola.

Desde 1984 na luta para realizar a reforma agrária, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) defende uma solução ampla para o problema fundiário, que ponha em perspectiva não só a melhoria das condições de vida no campo, mas também a produção ecológica de alimentos.

Na opinião da Antônia Ivoneide, da Coordenação Nacional do MST, a lei que trata do assunto fundiário (Lei 11.952, de 2009) é suficiente para resolver a demanda pela regularização de terras. No entanto, faltaria ao governo federal priorizar e executar os procedimentos necessários para regularizar a posse dos pequenos produtores rurais. Ela destaca que o Brasil está produzindo muito, porém a preços exorbitantes, e que a falta de apoio governamental gera um grande risco de desabastecimento.

— A reforma agrária desafogaria tanto as necessidades de moradia, como a produção de alimentos. Não estou falando só distribuição de terra, mas da mudança na estrutura fundiária e revisão da situação do modelo agrário do Brasil, inclusive com incentivo, com crédito, e com outros apoios para que se possa desenvolver a agricultura familiar. O acesso dos trabalhadores à terra e à condição de produzir também gera condição de consumir. E a falta de produção rural também traz problemas para economia brasileira, principalmente para os pequenos municípios — ressalta a dirigente.

Antônia Ivoneide enfatiza que a reforma agrária engloba os recursos para a aquisição de terra, desenvolvimento dos assentamentos, assistência técnica, capacitação dos trabalhadores e apoio no processo de produção da “agricultura familiar e camponesa”.

— Que essas terras públicas possam ser utilizadas para a reforma agrária. Poderiam ser regulamentadas para assentar várias famílias e para garantia inclusive do processo de produção da agricultura necessária ao país — frisa.

Antônia Ivoneide defende política para acesso à terra e ao crédito para produzir (foto: Webert da Cruz/Fama 2018)

Na análise do senador Confúcio Moura (MDB-RO), o problema agrário no Brasil decorre de processos de colonização “malfeitos” que vêm deixando rastros de irregularidades na posse da terra, conflitos permanentes e ilegalidades. Ele avalia que o atual governo não tem agido de forma eficiente em referência à política agrária, pauta que não estaria sendo encaminhada como prioridade.

— O avanço da colonização tem provocado impactos sobre o meio ambiente e a invasão de terras públicas. A reforma agrária não é um assunto prioritário desse governo. É um assunto que, infelizmente, vamos ter que deixar para resolver no futuro. Este ano eu não vejo possibilidade nenhuma de ser levada a sério — resume.

Confúcio Moura: problemas na política agrária têm levado a conflitos e ilegalidades (foto: Marcos Oliveira/Agência Senado)

O mapa dos problemas fundiários é de fato um grande quebra-cabeças com dupla dificuldade, já que ao mesmo tempo é preciso entender um processo intrincado e ir substituindo as peças por outras que se harmonizem melhor com as necessidades de grupos heterogêneos, com escopo e interesses conflitantes.

Segundo os pesquisadores paranaenses, mesmo o grupo político com ligações históricas e orgânicas com os sem-terra recebeu críticas dos movimentos sociais por não tocar tão fundo no problema da estrutura fundiária e de certa forma investir na regularização de assentamentos mais do que reduzir a concentração — ainda que muitas pesquisas apontem “ganhos qualitativos” durante os mandatos de Lula em comparação com “ganhos quantitativos” durante as administrações de Fernando Henrique.

No estudo dos ciclos políticos, os estudiosos usam o Índice de Gini para medir a desigualdade com relação ao tamanho das propriedades, que entre 1998 e 2014, nunca esteve abaixo de 0,8. Quanto mais perto de 1, mais concentrada é a terra, e quanto mais perto de 0, menor é a concentração. “Nota-se reduções no índice entre os anos de 1998 e 2003, e de 2011 para 2012. Contudo, o ano de 2014 apresentou um aumento significativo, ficando acima do valor do índice para o ano de 1998, com 0,860.

Mesclam-se à concentração da terra, além das ocupações irregulares, projetos de assentamentos não bem concluídos, venda ou abandono de lotes recebidos, grilagem de terras, devastação ambiental, conflitos entre grandes fazendeiros e quilombolas e entre fazendeiros, madeireiros, garimpeiros e índios.

O levantamento das ocupações de terras dão conta de uma subida íngreme de 50 em 1990 para 856, em 1999, queda para 262 em 2002 e novamente uma elevação para marcar 662 em 2004, permanecendo nessa faixa, com movimento de queda até 391 em 2007, seguido de nova queda para 184 em 2010, subindo a 256 em 2013 e finalmente caindo a 212 em 2016.

Situação fundiária na Amazônia

As contendas são de toda ordem e em toda parte. Relatório da Comissão Pastoral da Terra mostra que entre 1985 e 18 de abril de 2020, 1.973 pessoas morreram em conflitos de terra no Brasil, num total de 1.496 casos, que levaram a 122 julgamentos. Destes, resultaram 141 condenações de mandantes e executores e 224 absolvições. Dos condenados, 16 foram soltos. Os estados com mais vítimas foram o Pará (738), Maranhão (172) e Mato Grosso (145).

Só em 2019, registraram-se 1.833 conflitos, com crescimento de 23% em relação a de 2018, segundo informa a EBC com base nos números da CPT. As disputas por terra tiveram impacto sobre a vida de 859 mil pessoas. A região amazônica concentrou 73% das tentativas de assassinato, 79% das ameaças de morte e 71% das famílias expostas a conflitos. É do mesmo modo na Amazônia que também estavam 57% das 5.877 famílias despejadas de seus lares e 84% das que tiveram suas casas ou terras invadidas.

Se nos anos 90 as manchetes chamavam a atenção para o que acontecia no Pontal do Paranapanema, no Extremo-Oeste de São Paulo, hoje convocam o público justamente para ver mais de perto o que se passa na Amazônia, palco das maiores preocupações, inclusive internacionais, em termos de danos ao meio ambiente e desrespeito aos direitos humanos — de grupos indígenas principalmente.

E é para esse território que está direcionada grande parte das medidas do governo atual com seu programa de regularização fundiária e também algumas iniciativas de parlamentares. Estima-se que 450 mil km² das terras públicas ali estejam ocupadas por pessoas sem documentação, o que equivale a uma disputa por propriedade em 53% do território. Em torno de 23% da Amazônia Legal são supostamente propriedades privadas, mas sem qualquer validação pelo cadastro de terras administrado pelo Incra. Há ainda 9% de posses, e os outros 21% são áreas supostamente públicas fora de áreas protegidas, mas que podem estar sendo ocupadas.

A primeira tentativa do governo para resolver essas e outras questões foi a Medida Provisória 910/2019, relatada pelo senador Irajá (PSD-TO), que tratava da regularização fundiária de ocupações em terras da União, mas que perdeu a validade em maio de 2020 sem ser votada nos Plenários da Câmara dos Deputados e do Senado. Diante da polêmica sobre o texto, os deputados resolveram apresentar um projeto de lei em substituição à medida, o PL 2.633/2020.

A MP estabelecia novos critérios para a regularização fundiária de imóveis da União e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) ocupados. O texto original passou de julho de 2008 para até maio de 2014 a data máxima de posse de propriedades que podem ser regularizadas. Além disso, permitiu que a regularização fosse feita por autodeclaração para terras com até 15 módulos fiscais. Antes, isso valia apenas para pequenos lotes de até quatro módulos — e apenas na Amazônia Legal. Dependendo da região, um módulo fiscal varia de 5 a 110 hectares. Segundo a oposição, as mudanças favoreciam a grilagem e serviam como uma anistia àqueles que cometeram crimes ambientais.

Entre os aspectos da MP considerados importantes pelo governo estavam a exigência de preenchimento do Cadastro Ambiental Rural (CAR), a proibição da regularização em área com infração ambiental ou com embargo ambiental, o uso do sensoriamento remoto para orientar o processo e a exigência de Termo de Ajuste de Conduta (TAC) ou Programa de Regularização Ambiental (PRA) para o proponente prosseguir com a regularização.

Operação de fiscalização contra grilagem de terras na Amazônia (foto: Vinícius Mendonça/Ibama)

Especialistas que participaram de audiência pública da Subcomissão Temporária sobre a Regularização Fundiária em 2019, bateram na tecla de que a regularização de terras combinada com assistência técnica, crédito, educação rural e ciência e tecnologia é a fórmula para acabar com o desmatamento e as queimadas na Amazônia. O secretário especial de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Luiz Antônio Nabhan Garcia, associou ali título de propriedade a dignidade:

“A regularização fundiária para o Brasil, e principalmente para a Amazônia Legal, é fundamental, pois trará segurança jurídica, que acarreta segurança econômica e social. O governo tem por meta e tem por dever essa questão”.

Em pronunciamento em outubro de 2020, Confúcio Moura criticou os excessos burocráticos que dificultam o acesso das pessoas à titularidade definitiva das terras, o que contribui para a “desordem no campo, justamente pela falta de legitimidade” dos proprietários:

— Não é por falta de leis. O que falta é nós fazermos algumas coisas que facilitem, que realmente concorram para que os recursos cheguem aos estados; que favoreçam as parcerias com os municípios, enfim, que levem a englobar todo mundo na reforma agrária.

Diante da perda de validade da MP 910, e sem uma solução por parte do Congresso, o governo publicou em dezembro do ano passado o Decreto 10.592/2020, que regulamenta procedimentos de regularização fundiária rural em terras da União. O decreto inclui a possibilidade de apresentação da documentação de forma digitalizada, de sensoriamento remoto e consulta à base de dados do governo federal para todos os imóveis e de processo simplificado para a regularização de imóveis de até um módulo fiscal. O normativo confere nova regulamentação à Lei 11.952, de 2009. A intenção é estabelecer, de forma clara e objetiva, os procedimentos que devem ser seguidos na a regularização de áreas rurais em terras na Amazônia Legal e em terras do Incra.

De forma a adequar os procedimentos para regularização de terras ao Decreto 10.592, foi publicada a Instrução Normativa Incra nº 104, que dispõe de diretrizes aplicáveis às ocupações passíveis de regularização e projetos com características de colonização criados pelo Incra, abrangendo todo o país. Recuperando o conteúdo da MP 910, a IN 104 regulamenta o uso do sensoriamento remoto na análise dos processos e prevê a exigência do Cadastro Ambiental Rural (CAR) para a regularização.

Números fornecidos pelo Incra indicam que há 25,8 milhões de hectares de terras regularizáveis na Amazônia Legal, em 166,9 mil parcelas, sendo 147 mil delas em terras com até quatro módulos fiscais, 39% do total. As 3,7 mil parcelas de terras maiores que 15 módulos fiscais equivalem a 21% da área. No restante do país a estimativa é de que existam 158 mil parcelas passiveis de regularização, ocupando uma área equivalente a 2,9 milhões de hectares.

Em fevereiro 2021, o governo adotou novas providências para fazer avançar a regularização. Uma delas foi o lançamento do programa Titula Brasil, por meio da Instrução Normativa 105/2021, que integra as prefeituras em um sistema de parceria. Até o dia 13 de abril, 605 administrações municipais haviam entrado com pedido de adesão ao programa. O estado de Mato Grosso é o que mais apresentou solicitações.

No mês anterior, havia sido sancionada a Lei 14.118, de 2021, que criou o Programa Casa Verde e Amarela, que trata de regularização fundiária e crédito para a execução de obras e serviços destinados à regularização fundiária de núcleos urbanos informais classificados como de interesse social. A norma é resultado da medida provisória (MP) 996/2020, aprovada pelo Senado em dezembro.

Projetos de lei

No Senado, os parlamentares analisam propostas com objetivo de agilizar a regularização de terras públicas ocupadas por agricultores. No dia 15 foi aprovado no Plenário, e retornou à Câmara dos Deputados, o projeto que regulariza todas as colonizações em terras da União ocorridas antes de 10 de outubro de 2008. O PL PL 4.348/2019, do deputado Silas Câmara (Republicanos-AM), beneficia ocupações ocorridas depois de 1985, que ainda não têm amparo legal para sua regularização. O texto, que passou com 64 votos favoráveis e 6 contrários, é um substitutivo do senador Acir Gurgacz (PDT-RO), relator da matéria, que altera a Lei 11.952, de 2009. Esta permite a regularização de assentamentos criados somente até o dia 10 de outubro de 1985.

Segundo o autor do projeto, a justificativa para extensão do prazo é que há assentamentos com características de colonização que foram iniciados antes da data-limite estabelecida na lei (outubro de 1985), mas cuja formalização de implantação se deu posteriormente, e assim ficaram excluídos da regularização. “Cito um exemplo no Amazonas, que tem o assentamento de agricultores dos imóveis rurais denominados Seringal Monte e Gleba Monte. Esse assentamento teve seu marco legal em 1983 e, devido à burocracia dos órgãos brasileiros, só foi aprovado em 1992”, argumentou o deputado na apresentação do PL.

Conforme Gurgacz, durante a tramitação do projeto na Câmara dos Deputados, a nova data-limite não foi questionada por parlamentares, pelo governo federal ou por qualquer setor da sociedade civil. O senador entende, portanto, que o novo limite de enquadramento “constitui importante instrumento para apoio à regularização fundiária”.

A preocupação de senadores oposicionistas é que o projeto, caso se transforme em lei, acabe desvirtuando a demanda pela desconcentração da terra em troca de um pacote de regularizações. Durante a discussão do PL, o senador Jean Paul Prates (PT-RN) criticou os termos do substitutivo: “a porta continua aberta. Se levado ao pé da letra, esse projeto acaba com a reforma agrária”, advertiu, referindo-se à possibilidade de que projetos de reforma agrária migrem diretamente para a cobertura da Lei de Colonização, apesar dos objetivos diferentes. A senadora Kátia Abreu (PP-TO), porém, definiu a “porta de passagem” como “superimportante” para atender à colonização e garantir o livre-arbítrio aos assentados. “Ninguém cerca o livre mercado. As vendas dos lotes da reforma agrária estão acontecendo há anos, de gaveta! É isso que nós queremos? Criar e oficializar a ilegalidade no país?”, contra-argumentou.

Parte da controvérsia foi resolvida com a reinclusão no projeto, a pedido de Jean Paul Prates e de Kátia Abreu, da frase “com características de colonização, conforme regulamento”, em referência às terras que poderão ser regularizadas.

De acordo com Gurgacz, no site do Incra é possível saber quais são as modalidades de assentamento rural e acessar a relação dos 9.426 projetos de assentamentos criados e reconhecidos pela autarquia até 14 de dezembro de 2020, e as respectivas datas de criação. Eles abrangem 967.248 famílias e 87,6 milhões de hectares. Esses projetos são cadastrados no Sistema de Informações de Projetos da Reforma Agrária (Sipra), que informa quais as modalidades de projetos de colonização deixaram de ser criadas a partir da década de 1990, quando entraram em desuso. O senador acrescentou que também há o Sistema de Gestão Fundiária (Sigef), ferramenta eletrônica desenvolvida pelo Incra para “subsidiar a governança fundiária do território nacional”.

Outra proposta que está entre as prioridades no Congresso sobre a titularidade de terras brasileiras é o PL 2.633/2020, de autoria do deputado Zé Silva (Solidariedade-MG). O texto estabelece critérios para a regularização fundiária de imóveis da União, incluindo assentamentos. As regras são restritas a áreas ocupadas até julho de 2008 com até seis módulos fiscais — unidade fixada para cada município pelo Incra, que varia de 5 a 110 hectares. O texto está em análise na Câmara dos Deputados e foi apresentado como substitutivo da (MP) 910/2019, que perdeu a validade em maio de 2020.

Confira na tabela a seguir outras propostas em análise no Senado com objetivo de alterar a legislação e facilitar regularização de terras:

Projeto de Lei Ementa
PL 510/2021 Unifica a legislação de regularização fundiária para todo o país. Permite regularizar terras ocupadas anteriores a 25 de maio de 2012. E amplia a área passível de regularização para até 2.500 hectares.
PL 4.718/2020 Determina que a regularização fundiária das ocupações rurais incidentes em terras situadas em áreas da União, no âmbito da Amazônia Legal, poderá ser realizada por meio de processo judicial promovido pelo ocupante.
PL 1.364/2020 Transfere gratuitamente aos estados de Roraima e Amapá as terras federais matriculadas ou arrecadadas em nome da União, possibilita a regularização fundiária da faixa de fronteira e permite a redução nesses estados da reserva legal.
PL 3.228/2019 Prevê que integrarão a clientela de trabalhadores rurais a serem assentados em projetos de reforma agrária somente aqueles que tiverem domicílio eleitoral no município em que for criado o assentamento.
PL 3.882/2019 Autoriza a ampliação em 12 meses do prazo para concessão de descontos para a liquidação de dívidas originárias de operações de crédito rural inscritas em dívida ativa da União.
PL 4.810/2019 Estabelece a isenção de taxas registros cartoriais em programas de regularização fundiária.
PL 5.017/2019 Prevê a concessão de descontos especiais nas tarifas de energia elétrica utilizada para atividade de irrigação, aquicultura e exploração de poços semiartesianos.
PL 6.546/2019 Determina ao produtor rural comprovação do período de pousio por meio de registro da data do seu início no Cadastro Ambiental Rural.
PL 4.676/2019 Estabelece a natureza facultativa da adesão ao sistema de certificação criado pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.

Fonte: Agência Senado

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