Estudo realizado por meio de parceria entre o Instituto Leônidas & Maria Deane (ILMD/Fiocruz Amazonia), a Lancaster University, do Reino Unido, a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Federal do Pará (UFPA), demonstrou que o consumo de carne de caça – de animais como roedores, antas, porcos selvagens, veados e aves -, muito comum entre os ribeirinhos da Amazônia, pode reduzir as taxas de anemia infantil por ser uma fonte alimentar rica em ferro. De acordo com o pesquisador do ILMD, Jesem Orellana, que participou das etapas da pesquisa no Amazonas, a anemia por deficiência de ferro é um agravo à saúde com múltiplas causas e uma das mais importantes é o consumo limitado ou irregular de alimentos ricos em ferro, como a proteína de origem animal, por exemplo.
“Infelizmente, o maior impacto, em termos de carga da doença, se dá nas crianças menores de cinco anos e que vivem em regiões socioeconomicamente vulneráveis e remotas, especialmente naquelas com limitado acesso a programas de assistência integral à saúde da criança e saneamento básico”, afirma.
Em relação ao tema avaliado, o pesquisador destaca que o estudo abre uma série de possibilidades de exploração acerca da sustentabilidade alimentar. “Há uma grande lacuna na literatura científica de ciências da saúde, avaliando a relação entre consumo de carne de caça e anemia em crianças menores de 5 anos, especialmente em regiões com poucas alternativas à sua sustentabilidade alimentar, como crianças ribeirinhas que vivem em regiões remotas e com baixa cobertura de políticas governamentais capazes de garantir segurança alimentar ou condições de saúde adequadas”. Segundo a pesquisadora da USP, Patrícia Carignano Torres, em linhas gerais, o trabalho sugere que comer carne de caça está associado à redução de casos de anemia infantil em domicílios ribeirinhos mais vulneráveis da Amazônia.
Os pesquisadores encontraram que cerca de dois terços das crianças de domicílios rurais mais vulneráveis à pobreza foram consideradas anêmicas, devido a fatores como insegurança alimentar, consumo de alimentos de menor qualidade nutricional, malária e infecções parasitárias intestinais. A pesquisa avaliou 610 crianças, com idades entre 6 e 59 meses (0,5 a 4,9 anos), de quatro cidades de acesso remoto na Amazônia, incluindo 58 comunidades ribeirinhas. Uma das cidades foi Ipixuna, distante 2.800 quilômetros fluviais de Manaus. Foram realizadas entrevistas para coletar informações diversas, incluindo a frequência do consumo de carne de caça, bem como coletadas amostras de sangue para medir a concentração de hemoglobina, um indicador de anemia.
O estudo foi publicado na “Scientific Reports”, revista que compõe o portfólio científico da “Nature”, uma das mais relevantes do Mundo. O artigo intitulado “Wildmeat consumption and child health in Amazonia” ( https://rdcu.be/cKLXg ), aponta que as famílias rurais consomem, em média, quatro vezes mais carne de caça do que as famílias das zonas urbanas. Além disso, após simulações estatísticas, os pesquisadores estimaram que as taxas de anemia por deficiência de ferro em crianças pobres da zona rural poderiam aumentar cerca de 10% em termos relativos – mais de 3.000 crianças se considerarmos todos os 44 municípios sem acesso por estrada apenas no Estado do Amazonas -, caso o acesso à carne de caça fosse restringido. Por outro lado, se as crianças rurais mais vulneráveis do Amazonas comessem uma refeição adicional de carne de caça a cada semana, a prevalência de anemia reduziria em cerca de 20% em termos relativos.
Segundo o pesquisador Jesem Orellana, é possível que a maior contribuição deste estudo seja a de reacender a negligenciada discussão sobre a possível relação entre o consumo de carne de caça e anemia infantil, um tema muitas vezes evitado não apenas por preocupações ambientais (possível relação com o aumento do desmatamento, redução da diversidade da fauna, devido a caça excessiva) ou ligadas a doenças zoonóticas decorrentes da interação homem-natureza (surgimento de novas doenças ou disseminação ainda maior de doenças conhecidas), como também dos tabus alimentares (maior ou menor aceitação de certos tipos de caça na dieta de crianças), especialmente em locais onde o seu consumo é visto como dispensável ou facilmente substituível, como em áreas urbanas, por exemplo.
“Nas áreas urbanas há maior acesso a outras fontes alimentares, não necessariamente mais ricas do ponto de vista nutricional, como os alimentos ultra processados (salsicha, bacon, hambúrgueres, sopas instantâneas, frango congelado, bolachas, pães, salgadinhos de pacote, entre outros). Outro ponto importante deste estudo é que parece não haver uma relação significativa entre consumo de carne de caça e anemia em zonas urbanas e até mesmo em domicílios rurais menos desfavorecidos, sugerindo uma especificidade até então inexplorada na Amazônia brasileira”, pondera o pesquisador. Para Patricia Torres, “o potencial benéfico do consumo de carne de caça sobre os níveis de anemia apenas em crianças mais vulneráveis da zona rural é um aspecto que favorece a promoção de iniciativas de manejo sustentável da fauna nessas áreas rurais, permitindo a conciliação entre interesses sanitários e nutiricionais com aqueles de ordem mais ambiental ou legal”.
Orellana observa que “é importante destacar que para muitas dessas crianças de domicílios rurais mais vulneráveis, especialmente àquelas menores de 2 anos, o consumo de carne de caça pode não representar exatamente uma preferência alimentar, mas uma necessidade humana básica de acesso à proteína animal, dado o limitado acesso a outras fontes alimentares de ferro como a carne bovina, por exemplo. No atual contexto pandêmico e de crise econômica no Brasil, esse aspecto precisa ser considerado”.
E continua: “Os resultados do estudo retratam um padrão de consumo de carne de caça previamente existente e que pode estar limitando, ainda que modestamente, não apenas o número de crianças de domicílios rurais mais vulneráveis com anemia, como suas consequências negativas no curto e longo prazo, incluindo desde os conhecidos sintomas de fadiga e menor capacidade física, comprometimento da capacidade de aprendizagem ou da resistência a infecções, até a menor produtividade econômica na vida adulta”.
“De um lado, cortar ou limitar o acesso à carne de caça de crianças de domicílios rurais mais vulneráveis poderia deteriorar ainda mais suas precárias condições de saúde e nutrição e, de outro, aumentar o seu consumo sustentável poderia reduzir ainda mais o número de crianças anêmicas em contextos desfavoráveis e com pouco alcance de ações governamentais que visam reduzir o impacto da anemia sobre o crescimento e desenvolvimento dessas crianças, como àqueles do âmbito educacional (Programa Saúde na Escola) ou da saúde (fortificação de alimentação infantil com ferro ou tratamento/prevenção medicamentosa da anemia)”, observa.
Junto com Jesen Orellana e Patricia Torres, são autores do artigo as pesquisadoras Carla Morsello, da Universidade de São Paulo; Oriana Almeida, da Universidade Federal do Pará, os pesquisadores independentes André de Moraes, Moisés Pinto, Maria Fink e Maira Freire; e Erik Chacon-Montalvan e Luke Parry, da Lancaster University.