Loira, rica, médica, usuária de crack –com essa protagonista, “Onde Está Meu Coração”, série do Globoplay que estreia no início de maio, escolhe um recorte social para falar sobre o uso de drogas. Uma escolha, talvez pragmática, para chamar atenção para um problema latente nos dias de hoje.
“O Brasil tem uma deficiência no olhar. A gente olha uma pessoa negra usando droga e isso passa de uma forma diferente do que quando é uma menina loira, médica”, diz Daniel de Oliveira, que interpreta Miguel, o marido da personagem principal Amanda, vivida por Letícia Colin.
“Esse olhar brasileiro precisa ser trabalhado para as pessoas mais necessitadas também. É igual a quando acontece um crime, uma tragédia, com uma criança que é branca. Isso atinge a sociedade de uma forma diferente do que quando é uma criança negra que morre na favela”, diz o ator.
A série escrita por George Moura e Sergio Goldenberg –também autores de “O Rebu”, “Amores Roubados” e “Onde Nascem os Fortes”– narra como uma família paulista de classe alta reage ao se dar conta do vício de Amanda.
Daniel de Oliveira afirma que a série não lança um olhar moralista sobre o tema das drogas e aproveita para ecoar a máxima de que aquilo é assunto de saúde pública, não de polícia. Seu personagem, por exemplo, é um arquiteto, uma pessoa totalmente funcional, que ocasionalmente usa drogas, inclusive crack, mas parece seguir sua vida sem grandes tropeços.
Os pais de Amanda são interpretados por Mariana Lima e Fábio Assunção. Este último teve problemas com dependência química na vida real, chegou a virar alvo de memes sádicos e vir a público mais de uma vez para falar sobre o vício.
“Quando eu soube que o Fábio Assunção iria fazer, eu pensei ‘nossa, arriscado’. Mas ao mesmo tempo achei ele um cara corajoso para caramba, de botar a cara. Aí eu admirei ele mais ainda”, diz Oliveira. “Já o achava um grande ator, mas nunca tinha contracenado com ele. Vi que além de ser um grande ator, é parceiro em cena e fora dela.”
Num momento de pandemia, em que a tragédia já virou parte do cotidiano e do noticiário, um tema pesado como crack não pode causar uma indigestão num público já fragilizado? O ator discorda.
“Essa série foi escrita e dirigida de uma forma muito delicada. Tem realmente esses momentos pesados, mas acho que conta uma história humana, com um texto muito bonito, aí eu acredito que ela supera esse lado pesado, vai para outro lugar”, diz Oliveira.
Uma das categorias profissionais que mais têm sofrido com a pandemia, entre tantas, é a dos atores e demais profissionais da cultura. O setor cultural brasileiro terminou o ano passado perdendo 458 mil postos de trabalho, formais e informais, em comparação com o último trimestre de 2019.
Por isso, Daniel de Oliveira se diz privilegiado. “Neste momento, estou contratado, não posso reclamar de nada.”
Além do privilégio, ele fala em sorte –ou acaso. “Até pouco tempo atrás eu estava independente”, conta. Mas alguns meses antes de a pandemia explodir, ele fechou um contrato com a Globo e engatou papéis em “Hebe”, “Onde Está Meu Coração” e na segunda temporada de “Aruanas”, que chegou a ter as gravações interrompidas por causa das exigências de distanciamento impostas pelo coronavírus.
Quem não está protegido por um contrato com uma grande empresa, além de ter de lidar com um setor cultural paralisado pela pandemia, ainda encontra entraves impostos pelo governo federal.
No início de março, a Secretaria Especial da Cultura do governo Bolsonaro chegou a suspender a análise de projetos que buscavam recursos via Lei de Incentivo à Cultura, novo nome da Lei Rouanet, que fossem de cidades com restrições de circulação.
O valor total da captação de recursos via Rouanet no primeiro trimestre do ano é o menor já registrado no governo Bolsonaro. O Ministério Público Federal deu prazo de 15 dias para que o órgão respondesse a questionamentos sobre o andamento e a avaliação dos projetos.
“A gente está indo de mal a pior, cara. Neste governo, a esperança acabou, já era. Não tem mais jeito, eles são inimigos do povo, todos que estão ali”, diz.
No início da carreira, Oliveira trabalhou, em “Malhação”, com quem hoje encabeça a cultura na gestão Bolsonaro, Mario Frias. Embora fossem de núcleos diferentes, “a gente se esbarrava muito ali no Projac”, diz.
“Fico muito decepcionado e triste de ver o Mario nessa situação, porque não está ajudando em nada a cultura do país. É mais um equivocado na política. Não sei o que ele tá fazendo ali na verdade”, afirma. “Acompanhar o que ele está fazendo é decepcionante. O cara chegar e ficar do lado de um presidente como o Bolsonaro, que é um inimigo da cultura. Ele [Mario Frias] passa a ser um inimigo da cultura também.”