Crimes contra a vida, em que os elementos de prova que compõem o inquérito policial são chaves para a realização de justiça e manutenção dos criminosos atrás das grades, podem ficar impunes. Isso porquê tudo o que for colhido durante a fase de investigação, a exemplo dos depoimentos, deixarão de ser levados ao Tribunal do Júri caso o novo Código de Processo Penal (CPP), apresentado pelo deputado federal João Campos (Republicanos-GO), seja aprovado no Congresso Nacional.
A Associação Amazonense do Ministério Público (AAMP) faz parte de um movimento nacional contra o Projeto de Lei – que dá margem à impunidade e ainda encolhe o poder de investigação dos MPs.
“O PL 8045/2010 proíbe a menção de prova policial no Tribunal do Júri, que julga os crimes intencionais contra a vida, como os homicídios. Ou seja, provas colhidas pela polícia durante o inquérito não poderão ser utilizadas durante o julgamento e isso trará um prejuízo no julgamento, pois o jurado não terá acesso a todas as informações do caso. Além disso, a decisão, que hoje é definida por maioria de votos, para não expor quem foi favorável ou não à condenação, passará a ser por unanimidade. Assim, basta que um dos sete jurados tenha dúvida ou concorde com a motivação do autor para tirar a vida daquela vítima para que o réu fique livre e o julgamento será dissolvido”, destacou o presidente da AAMP, Promotor de Justiça Alessandro Samartin.
O relatório proposto apresenta riscos ao sistema processual penal, com a sugestão de alterações que confundem preceitos constitucionais e criam barreiras às fases de investigação, processo e julgamento. Segundo o presidente da AAMP, o novo CPP quebra a inviolabilidade do sigilo das votações e expõe a identidade dos jurados caso a decisão passe a ser por unanimidade.
“Já imaginou como serão os julgamentos de líderes de facções criminosas ou de criminosos de alta periculosidade? Os jurados vão ter medo de votar de forma unânime pelas condenações, já que o réu saberá quem é quem na composição do júri. Ele não terá medo de se vingar e, por temer represálias, é mais fácil o jurado decidir pela absolvição do réu. O assassino, que deveria estar longe da vida em sociedade, pagando pelos crimes que cometeu, ficará livre para continuar a sua vida e, porventura, cometendo novas infrações. Devemos considerar ainda o encolhimento do poder de investigação do Ministério Público – que, com certeza, só trará vitória ao crime organizado e a ruína de forças-tarefas, como os GAECOs”, destacou Samartin.
Em casos de feminicídios, quando o homem mata a ex-mulher por não aceitar a separação, por sua condição de gênero e por ainda se sentir o “dono” da vítima, o machismo pode ser uma barreira para que a Justiça seja feita.
“Se um dos jurados acreditar no argumento do réu, que diz ter matado porque não aceitava ver a ex-companheira refazendo a sua vida com outra pessoa depois da separação, o autor do feminicídio será solto e a vítima será novamente violada e vitimizada mais uma vez. Isso é muito grave e vai na contramão de toda a luta da sociedade para acabar com a violência contra a mulher. Uma adequação do CPP é necessária, mas essas mudanças não podem se sobrepor aos direitos fundamentais, à defesa da vítima e nem à garantia do devido processo legal”.
O novo CPP merece uma maior reflexão acerca de sua pertinência e de sua conformidade com a prática jurídica e com os direitos e garantias fundamentais.
Limite ao trabalho dos MPs
As mudanças sugeridas no CPP foram comparadas ao que poderia ter ocorrido caso houvesse sido aprovada a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) número 37, que pretendia limitar o poder de investigação do Ministério Público e de outras instituições. Esse tema já foi alvo de debate no próprio Congresso Nacional, em 2013, e foi derrotado para preservar a Constituição Federal e a capacidade do Ministério Público de zelar pelo interesse público. Em 2015, foi a vez do Supremo Tribunal Federal (STF) concluir pela legalidade da atuação investigativa do MP.
“Estão tentando mais uma vez enfraquecer os órgãos de investigação e de combate aos crimes contra a corrupção, desvio de dinheiro público, violência contra a mulher e tantos outros que são investigados pelos Ministérios Públicos”, destacou o presidente da AAMP.
Confira os 16 fatos abordados pelo novo CPP:
1 – Limitação do poder investigatório do Ministério Público (art. 19, § 3º).
2 – Estabelece, como regra, prazo de duração de inquérito policial (art. 34).
3 – Usurpação de função do Ministério Público no Acordo de Não Persecução Penal (art. 39, caput e § 7º).
4 – Invasão da autonomia do Ministério Público no tocante à apresentação de ANPP – Acordo de Não Persecução Penal, quando retira-lhe a possibilidade de indicar o local da prestação dos serviços e o destinatário das prestações pecuniárias (art.39, § 4º, incisos I e II)
5 – Permissão para advogados investigarem sem controle do Estado (arts. 44/49, c.c. art. 13).
6 – Proibição da condenação baseada em indícios/fragilização do combate ao crime organizado (arts. 197, §§ 2º e 3º).
7 – Burocratização da prova de reconhecimento de pessoas (art. 231, inciso II).
8 – Dificulta a interceptação telefônica e de dados como método investigativo (arts. 283, II).
9 – Retirada de fase da pronúncia do Tribunal do Júri, que julga os crimes intencionais contra a vida, como homicídios (Seção I do Capítulo VI).
10 – Proibição de menção de prova policial no Tribunal do Júri (que julga os crimes intencionais contra a vida, como homicídios; art. 452, inciso I).
11 – Quesitação (votação no Tribunal do Júri; arts. 456/476).
12 – Uso incorreto da prática restaurativa penal nos crimes contra a vida (art. 452, II e IV, c.c. arts. 114/123).
13 – Proibição ao Ministério Público de ter instrumento imediato para a reversão de soltura do réu nas prisões cautelares, como a preventiva (art. 554, parágrafo único).
14 – Legitima o delegado de polícia, sem qualquer justificativa baseada em interesse público e nas capacidades institucionais, a exercer concorrentemente à vítima, pedido de revisão do arquivamento do inquérito policial ou das Peças de Informação feito pelo MP (art.40, § 1º)
15 – Vedação de valoração dos elementos informativos constantes do ato de apresentação na audiência de custódia (art. 618, § 5º)
16 – Retirada do Ministério Público, do dispositivo atinente à propositura da proposta de suspensão condicional do processo, dando margem a interpretações de que referido instituto de política criminal não é exclusivo do titular da ação (art. 323)